
Desde o primeiro Festival de História, fatos e mitos sobre a vida de Francisca da Silva de Oliveira, a famosa ex-escrava que viveu em Diamantina na segunda metade do século XVIII, têm sido investigados em mesas de debates de suas edições bienais. Na etapa portuguesa do 3º Festival de História, realizado em Braga em 2015, por exemplo, a ex-escrava estava ao lado de um poderoso primeiro-ministro, Sebastião José de Carvalho e Melo, que também viveu naquele século, na mesa "Paralelos biográficos: o Marquês de Pombal e Chica da Silva".
Estudiosa da vida de Chica - em verdade Francisca da Silva, filha de negro e português nascida na região do Distrito Diamantino entre 1731 e 1735 -, a historiadora Júnia Furtado, que já havia falado sobre ela em Diamantina na primeira edição do Festival em 2011, encarregou-se de desvendar a sua biografia para os portugueses em Braga, ao lado do colega britânico Kenneth Maxwell, e dos investigadores da Universidade Nova de Lisboa Nuno Gonçalo Monteiro e Roberta Stumpf.
Para Júnia Furtado, o mito de que Chica foi uma mulata sensual que hipnotizou o contratador João Fernandes de Oliveira e escandalizou a sociedade do Arraial do Tijuco foi inventado no século XIX. E se há como precisar uma data para a emergência do mito Chica da Silva, estaria situada mais de 60 anos após a sua morte, pela pena ferina de Joaquim Felício dos Santos no clássico "Memórias do Distrito Diamantino", livro publicado em 1868 em que o autor traça em dois capítulos o perfil de uma personagem voluntariosa e sedutora, cujos desejos e vontades eram satisfeitos sem pestanejar pelo contratador.
"Mas Chica freqüentava a elite branca do arraial e todas as irmandades brancas do Tijuco e, ao morrer, foi enterrada no cemitério da Igreja de São Francisco de Assis, privilégio dos brancos endinheirados. Isso tudo prova que ela era uma mulher que se portava de acordo com os padrões sociais e morais da época", argumentou a pesquisadora Júnia Ferreira Furtado.
Seja como for, o mito seria reapropriado pelo cinema e pela televisão na segunda metade do século passado e foi esse o tema da mesa de debates do 4º fHist em 2017 e que contou com as presenças da atriz e cantora Zezé Motta, que ficou conhecida como rainha negra do Brasil após viver a personagem no filme "Xica da Silva", e do diretor do Teatro Santa Izabel, Frederico Silva Santos, sob mediação do jornalista Otto Sarkis, da coordenação do Festival.
Lançado em meados da década de 1970, o premiado filme do diretor Cacá Diegues seria o meio decisivo para a popularização da personagem mistificada. "A Chica é a minha fada madrinha e dá sorte pra muita gente. A vida da atriz Thaís Araújo também mudou depois que ela fez a Chica da Silva na novela. Então, foi um presente, um astral, eu ter vivido essa personagem", reverenciou Zezé Motta.
Segundo a atriz, a personagem e o filme tiveram grande importância também para o crescimento do movimento contra o racismo e discriminação no Brasil. "Depois do filme, é verdade que muita coisa mudou para melhor, mas ainda temos muita luta pela frente, pois os negros continuam sendo marginalizados, principalmente os jovens e as mulheres negras", lamentou.
"Chica são muitas, não é uma única mulher, não é um único mito. Ela é transversal na cultura brasileira", afirmou, por sua vez, Silva Santos, para quem isso se comprova pela multiplicidade de produções sobre ela. Na literatura brasileira, ele destacou que entre 1955 e 2000 foram lançados sete livros sobre Chica da Silva, desde romances a peças de teatro e obras fundamentadas em fatos históricos. Já entre 2000 e 2016, ocorreria uma nova leva de produções literárias sobre a escrava alforriada, agora com o diferencial de que quatro das oito obras publicadas terem sido escritas por mulheres, entre os quais "Chica da Silva e o contratador dos diamantes - o outro lado do mito", de Júnia Furtado, em 2003.