
Em 1965, o então presidente general Castelo Branco, diante de denúncias de tortura que estariam comprometendo o governo, solicitou ao seu chefe de gabinete – general Ernesto Geisel – uma investigação sobre a veracidade ou não dos fatos. Concluído o trabalho, o futuro general presidente Geisel fez um relatório manuscrito, de 19 páginas, no qual confirmou a existência da tortura nos quartéis como técnica de interrogatório, localiza Pernambuco e Rio de Janeiro com maiores concentrações da prática, mas não propôs proibi-la, nem qualquer punição aos responsáveis.
"Geisel informa apenas que pediu para pararem", relata a historiadora Heloísa Starling, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
A prática da tortura tem então uma queda em 1965, mas, impune, voltaria a crescer de 1966 a 1968 para explodir em 1969, registram os gráficos da pesquisa empreendida por Starling com uma equipe mista de historiadores e jornalistas contratados para assessorar a Comissão Nacional da Verdade. A pesquisa fundamenta-se, sobretudo, em denúncias de jornais da época, sendo um dos seus quatro grandes temas: como se constituiu a matriz de repressão na ditadura brasileira. Os estudos permitem algumas conclusões, segundo a historiadora. "Todos os elementos constitutivos de uma matriz da repressão se estruturam a partir de 1964 e não somente depois de 1968, com o AI 5, como sempre foi dito", afirma.
Com características diferentes das demais ditaduras da América Latina, a brasileira tem clara repressão de massa apenas nos primeiros meses pós-golpe. Depois, ela é cirúrgica e seletiva, explica Starling. Na área rural, sustenta-se combinada com forças tradicionais, liberando atos de jagunços e da velha oligarquia. Nas principais cidades, quartéis e até universidades tornaram-se centros de tortura.
A matriz da repressão - demonstrou a pesquisa - teve três pernas: prisões, tortura e, a partir dos anos 1970, o extermínio. "Não como um ponto fora da curva ou excesso, a tortura integrou a matriz de repressão, que foi uma política de Estado", garante a historiadora.
A pesquisa conseguiu localizar os principais centros de tortura constituídos já em 1964/65, a maioria deles mantida durante toda a ditadura. Apurou, ainda, a informação de que na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro funcionava um deles, e outro na Universidade Federal de Pernambuco.
Para caracterizar a tortura como um padrão, a pesquisa apurou também as modalidades praticadas em 1964/65, que se manteriam nos anos posteriores: o pau de arara, banho chinês, afogamento, choques elétricos, a geladeira (considerado processo lento pelo Cenimar), soro da verdade, telefone e torturas psicológicas.
Eu acuso
"Eu acuso o Estado brasileiro por ter feito da tortura uma política de Estado". Assim, a historiadora, então arquivista do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas e socióloga Dulce Pandofi fez questão de concluir o seu depoimento na Comissão Nacional da Verdade, acusando nominalmente todos os presidentes militares. Era o resultado de um demorado e sofrido processo de preparação para fazê-lo, conforme ela relatou no 2º Festival de História.
"Retornaram as cores, os odores e os sonhos intensamente enquanto me preparei", afirmou. Pandofi contou que sentindo a responsabilidade de ocupar o triplo lugar de historiadora, militante pela causa da criação de uma Comissão da Verdade no Brasil e depoente, embora não fosse a primeira vez que relatasse as torturas que sofreu, ao fazer o depoimento conseguiu se lembrar de detalhes que jamais haviam retornado a sua memória. Inclusive de um texto do escritor francês Emile Zola, de 1898, "Jáccuse" (eu acuso), que lera na mocidade e acabou por inspirá-la a não assumir um papel de vítima, mas antes, acusatório.
O marco histórico da abertura de arquivos é a Revolução Francesa, quando, quatro anos após 1789, são abertos arquivos privados de homens públicos e declarados como importantes para a Nação que se construía, cita Dulce. Mas apenas com a Declaração dos Direitos do Homem, pós 2ª Guerra Mundial, a informação ganharia status de direito, garantidor de outros direitos humanos. No conhecido dilema dos direitos que por vezes se contrapõem: à privacidade e à informação, deve ter prevalência aquele que representar um bem comum, defende a historiadora. Na própria pele, entretanto, o drama chegou a machucá-la.
Para a historiadora, a comissão teve enorme relevância para a memória do Brasil, que a instalou tardiamente. Toda memória histórica traz uma disputa, nesse caso entre a memória dominante, porque contada por mais de 30 anos, e a contada agora. "Memória não é passado, mas presente e futuro: o que hoje é dito, influencia o amanhã", ela sintetizou.